Foi na Rua Clarimundo de Melo, esquina com a Lemos de Brito, em Quintino Bocaiúva, que duas senhoras se resguardavam do sol escaldante carioca em um ponto de ônibus. As duas fizeram sinal para o mesmo coletivo, que ia para o Rio Comprido. Desajeitadas, e, principalmente, impossibilitadas de correr, em decorrência da idade já avançada, andaram em direção à entrada do ônibus, que parou alguns metros adiante.
A artificialmente ruiva ajudou a de cabelo grisalho a subir aquele alto degrau. Esta segurou a companheira em seguida, para que não caísse devido à arrancada que o automóvel deu após seu embarque. A que tinha cabelo grisalho carregava uma sacola de papelão com alça de plástico, onde continham alguns de seus pertences, como documentos, dinheiro, toalhinhas para secar o suor, um estojinho com esmaltes, lixas e uma bíblia de bolso. A (falsa) ruiva levava uma bolsa e um guarda-chuva grande e colorido, quase da sua altura, que servia de sombrinha. Ambas pareciam mestras em malabares ao passarem pela roleta com tanta “bagagem”.
Por coincidência, calhou de sentarem juntas.
“Menina, que sufoco, hein!”, suspirou a ruiva, sentada na ponta.
“Pois é, minha filha, parece que eles fazem até de propósito, né?”, argumentou a outra, apoiando sua sacola de forma que pudesse ficar mais confortável naquele estreito e incômodo banco.
“Nem me fale! Desde que meu médico falou que eu tô com problema de artrose eu já não vivo mais em paz. Consigo fazer mais nada, acredita?”
“Não brinca! Tu sabe que a minha vizinha também tá assim? Caso sério!”, disse a de cabelo grisalho, enquanto tentava fechar, com força, a sua janela, para que o vento não a desgrenhasse.
O ônibus fez uma curva brusca à direita na Rua Dois de Fevereiro, fazendo com que a ruiva escorregasse de seu assento, sendo logo acudida por um estudante de cabelos lisos e compridos, bem na altura dos ombros. Vestia o uniforme de um colégio das redondezas e um piercing nos lábios inferiores. Ele estava prestes a saltar.
“Deus lhe pague, viu, querido? A vida não tá fácil pra gente não!”, agradeceu a ruiva. “Vai com Deus e, oh, estuda, viu! Essa é a melhor coisa que você pode fazer! Maior virtude”, enfatizou ela, com um aceno do rapaz através da porta de desembarque.
A de cabelo grisalho reabriu a janela, para dar um refresco de ar à nova colega, enquanto a ruiva se reorganizava no banco, reposicionando os pertences.
“Esse rapaz é bonzinho, né, apesar de ter aquele negócio na boca. Troço estranho, você não acha?”, retrucou a da janela.
Outra curva brusca. Agora, à esquerda, na Borja Reis. Uma mulher, trintonta, levantou-se para xingar o motorista de veado.
“Meu Deus, essa juventude tá perdida. Mas até que eu gosto de um barraco, sim, dá uma animadinha nos passeios. Porque você sabe que a vida tá muito difícil, né, é só desgraça atrás da outra, fez dois anos que sou viúva no último dia 15 de abril”, desabafou a ruiva, com uma mudança no semblante. Surgiram-lhe lágrimas nos olhos, rapidamente secadas com as mãos.
A de cabelo grisalho também se comoveu.
“Ih, eu também, mas eu já tô assim desde 28 de setembro! Ano de mil-novecentos-e-noventa-e-um! Não me esqueço mais... Foi um dia depois de São Cosme e Damião. Ele morreu de intoxicação, comeu algum doce estragado. Nessa época eu ainda tinha saúde, né, pra sair por aí distribuindo doce...”.
“Ih, minha filha, se o doce tava estragado, deve ter morrido um monte mais de criança, né, não?”.
As duas caíram na gargalhada. Comportavam-se como amigas de longa data. Enfrentaram todo o trânsito da Rua Dias da Cruz trocando dicas de tricô, simpatias para mau olhado (“mas Deus é meu maior protetor”, dizia a de cabelos naturais), falaram sobre os acontecimentos da novela no capítulo do dia anterior e sobre o preço (alto) da carne em um supermercado popular. Volta e meia, uma ou outra interrompia a conversa para queixar-se de algo, fosse pelo joanete – que começou-lhe a doer naquele determinado minuto –, fosse pela fila gigantesca que a de cabelo grisalho acabara de enfrentar, no banco, para receber seu pagamento.
O ônibus já estava na Barão do Bom Retiro, quase entrando nas alamedas do Grajaú, quando a ruiva se levantou.
“Chegou minha hora de soltar, tô até atrasada!”, avisou ela, puxando a cordinha.
“Ah, que pena, foi muito bom. Já sabe onde moro, né?”.
“Sei sim, tenho uma conhecida que mora por ali!”.
“Então aparece lá pra tomar um dedinho de café!”.
“Vou sim, pode deixar. Tomara que não chova hoje, né, tempo tá ficando esquisito! Bom, deixa eu ir, querida, beijo na família”.
A ruiva saltou, gesticulando um tchau.
Enquanto o ônibus aguardava o sinal verde, a de cabelo grisalho observava o lado de fora, pela janela. Avistou a colega atravessando a rua. Carregava sua bolsa, o guarda-chuva grande e colorido e uma sacola de papelão, com alça de plástico. A sua sacola de papelão. Com todos os seus pertences.
por PEDRO PAULO BASTOS, autor do blog As Ruas do Rio, e que, às vezes, sai escrevendo histórias que acabam dando como nessa daí.
4 comentários:
Pedro, histórias da vida real?? bjs
É fictício, mas poderia ser muito bem uma história real, não é mesmo? O que não falta é vigarista... haha
Pô, eu acreditei!
Adorei!
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